terça-feira, 28 de julho de 2015

Ari Barroso e a Aquarela do Brasil


O texto a seguir não me pertence. Veio diretamente da Ilha de Lutécia, como a autora gosta de se identificar e, considerando que o recebi via Facebook, está assinado por Verinha Machado, que é como ela é conhecida por lá. O objetivo desses comentários instigantes e interessantes foi dialogar com um texto de minha autoria que publiquei na Revista Ateliê Geográfico (http://www.revistas.ufg.br/index.php/atelie/index
intitulado Paisagem, Música Popular e Identidade no Brasil.
Espero que vocês gostem:

Quanto ao “Aquarela do Brasil”, embora toda a literatura o considera como um samba ufanista, creio ser interessante atentar para alguns detalhes como os versos:

"Abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado, Põe o rei congo no congado”

em torno dos quais, entendo que foi construído o resto da obra.
Mãe preta, como sabemos, era a ama-de-leite, a escrava que amamentava os filhos do "sinhô e da sinhá". Mas à noite, todos os escravos dormiam juntos num "cerrado", no terreiro da fazenda. Como o nome sugere, em Minas Gerais chamava-se cerrado o lugar fechado e apertado onde se amontoavam os escravos. Era lá que, à noite e ao fim dos trabalhos forçados, tais escravos se juntavam em manifestações culturais próprias, em rodas de “samba” - o samba originário e trazido de terras africanas, um misto de religião/ritmo e musica estigmatizados como “de negros”.
Ao falar em “tirar a mãe preta do cerrado”, o autor, que era ele mesmo mineiro, de certa forma propõe o fim desse “apartheid” – racial e cultural.
Ele chega a sugerir que se traga essa mãe preta do “terreiro fechado” para o salão da “casa grande”, onde os "sinhôs" faziam suas festas e dançavam apenas ritmos importados da Europa: valsa, polca etc.
Assim:
"Quero ver essa dona caminhando
Pelos salões arrastando o seu vestido rendado" ( *Brasil, pra mim!! )


Notemos que quem representa a escravidão na musica é a mãe preta, aquela que amamentava os filhos dos senhores, sugerindo que os brancos tomaram seu leite, tendo assim uma relação muito mais estreita e intima com os negros do que queriam fazer supor... lembrando que todo leite é a transformação do sangue em produto lácteo... estaria ele dizendo que corre sangue negro em veias brancas desses senhores?
Assim, Ary Barroso propõe que se “abra a cortina do passado”, referência à coisas encobertas e não assumidas que a cortina esconde; a origem desse povo também sendo negada.
Quanto ao rei congo, sabemos que no século XVIII, os “kongoleses” continuavam em bom numero dentre as centenas de milhares de cativos africanos trazidos ao Brasil no tráfico transatlântico. A enorme diáspora africana no Brasil, congolesa em particular, elaborou diversas formas de resistência cultural. Uma delas foi a organização das congadas, festas populares teatrais e ritualizadas que, mesclando elementos religiosos africanos e cristãos com dança e musica, celebravam e reconstituíam a cerimônia de coroação do Rei do Congo. O verdadeiro rei do Kongo, na época dessa diáspora, esteve em conchavos com os holandeses contra os portugueses, até perder a batalha e territórios para os lusitanos.
Assim, entendo mais essa estrofe

“põe o rei congo no congado”

como um apelo ao próprio povo em abandonar admirações à castas e posições sociais, em nome de uma sociedade mais igualitária, menos injusta, ao menos no quesito racismo e cultura... ele pede que se ponha o rei na dança popular...não esqueçamos que o autor está falando “com o Brasil" (as estrofes em questão estão no imperativo afirmativo), para que o mesmo se assuma, tire a mãe preta do gueto e bote o rei pra sambar com o povo.

Essas estrofes soam mais como denuncias e/ou convocação geral, quase como uma proposta revolucionária em termos sociais, numa sociedade racista e elitista. Notemos também que a frase :
*“Brasil, pra mim”
pode ser lida como uma forma de o autor concluir o que seria o Brasil para ele, algo como “esse é o Brasil pra mim”.

Assim, me pergunto até se não existe uma tentativa em “afogar” o resto dos versos quando leio passagens quase debochadas e pleonásticas como:

“Esse coqueiro que dá coco”

Ou

“ meu Brasil brasileiro”,

que podem tanto expressar um desdém, como também uma tentativa de chamar a atenção para outra coisa e escapar de uma censura mais que ativa em 1939 (data da obra) , quando havia que se driblar o poder e sua máquina repressora, situação que tão bem conhecemos...

Me parece até poder haver um pedido quase explicito também nesse sentido, quando o autor sugere:

“Deixa cantar de novo o trovador” (cantar livre, como antes da censura)

Há que se dizer que, no entanto, houve uma tentativa de censura por parte do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que vetou apenas o verso:

"terra do samba e do pandeiro"

por acha-lo "depreciativo" para o Brasil...
Lembrando que Getúlio queria formular uma Cultura Nacional com grandes iniciativas, como a Radio Nacional que seria estatizada pelo Estado Novo no ano seguinte; toda forma de manifestação cultural como o samba carioca que tinha sido alçado de condição "local" a símbolo da identidade nacional brasileira, era bem vista em principio...
Mas Ary Barroso teve que ir ao DIP convencer os censores a preservarem o verso... o resto parece ter “passado batido” para a censura e para todo mundo...
Apenas me lembro que ele também escreveu "Salada Mista" (gravada em outubro de 1938 por Carmen Miranda), uma letra debochada, porém não menos contrária ao nazi-fascismo apoiado por Vargas, o que destoa de uma pretensa postura nacionalista/ufanista do autor, como quer a literatura à respeito...
Bom, é só mais uma leitura, uma singela contribuição ao seu belo texto.