Primeiras palavras
O que vem por aí não é um texto acadêmico. Trata-se de algo
que se aproximou de uma crônica, mesmo que eu saiba muito bem que não sou um
cronista. Por outro lado, não fiz bibliografia, não citei dentro das normas
ABNT, não escrevi para publicar numa revista qualificada e, portanto, trata-se
da mais simples reflexão pessoal que quero compartilhar com os amigos e com
quem quiser se dar ao trabalho de lê-las.
Um segundo ponto a realçar é para aqueles que me conhecem
mais de perto: todos sabem que não entendo absolutamente nada de futebol e,
portanto, vão estranhar o título desses comentários. Não se assustem! Como
verão, meus comentários sobre a prática desse esporte (e de outros) não
exigiram mais que os limites dados pela minha ignorância sobre o assunto.
Como terceiro ponto, um pequeno roteiro de leitura: a ideia
geral desse texto é fazer uma crítica às esquerdas[1] e
à sua condição geral de ter se subordinado aos fundamentos das relações de
classe que sustentam a existência do Estado. Assim, futebol, democracia e
coisas do tipo estão aqui somente para ajudar na construção dos argumentos.
Entrando no assunto: futebol e guerra
Bom... vamos direto ao primeiro elemento na construção desses
argumentos: há muito tempo li ou ouvi algo (já não me lembro muito bem...) sobre
a relação entre os esportes e a formas do exercício da guerra. A partir dessa
leitura (ou conversa), passei a imaginar que tipo de guerra representa o vôlei,
o futebol, o basquete e assim por diante. Bom... não posso dizer que consegui
identificar em detalhe tais relações. Assim, se posso imaginar que no vôlei os
soldados não se tocam, só jogam “bombas” no campo inimigo e que no futebol e no
rúgbi nos aproximamos muito das guerras de infantaria, não é difícil afirmar
que tudo isso é uma simplificação e que esporte é esporte e guerra é guerra.
O segundo tema: Saramago nos convida a discutir democracia
e algumas digressões sobre o papel do Estado
Agora vamos ao segundo elemento da construção dos argumentos:
nos últimos tempos a associação entre os esportes e as guerras tem me levado à
construção de muitas outras digressões e não farei aqui mais que compartilhar
algumas delas, retomando um debate que, entre outros temas e pessoas, foi
proposto por Saramago: é preciso colocar em discussão o que já nos parece óbvio
e resolvido e, dentre tais temas, Democracia é, sem dúvida, um deles (cito de
memória e, por isso, confio na ideia, mas desconfio da construção frasal).
Ao tocar nesse delicado ponto que é a democracia, um primeiro desdobramento é, necessariamente, refletir sobre a maneira como, nos dias de hoje, exercitamos o poder (usar a expressão “poder político” sempre me pareceu algo pleonástico) e o resultado, em linhas gerais é que num primeiro momento votamos, num segundo voltamos a votar e, no terceiro, lá estamos nós votando. Trata-se da tal da democracia representativa (não seria isso um eufemismo?) que coloca nas mãos de alguns o poder sobre todos (se é que isso é possível). Claro... vem aí a discussão sobre o equilíbrio dos poderes, sobre o papel do judiciário, do legislativo e tudo o mais: é justamente aqui que o esporte parece vir em minha ajuda.
Ao tocar nesse delicado ponto que é a democracia, um primeiro desdobramento é, necessariamente, refletir sobre a maneira como, nos dias de hoje, exercitamos o poder (usar a expressão “poder político” sempre me pareceu algo pleonástico) e o resultado, em linhas gerais é que num primeiro momento votamos, num segundo voltamos a votar e, no terceiro, lá estamos nós votando. Trata-se da tal da democracia representativa (não seria isso um eufemismo?) que coloca nas mãos de alguns o poder sobre todos (se é que isso é possível). Claro... vem aí a discussão sobre o equilíbrio dos poderes, sobre o papel do judiciário, do legislativo e tudo o mais: é justamente aqui que o esporte parece vir em minha ajuda.
De volta ao futebol
Juntando o primeiro tema com o segundo, algumas imagens, como
todo brasileiro mais ou menos ligado nos fatos e nas notícias sobre os fatos, têm
insistido em povoar meus piores sonhos (aqueles que tenho quando estou
acordado): as massas festejantes ou reclamantes num campo de futebol e nas ruas
desse meu Brasil (vou mudar as escalas um pouco mais adiante). Eis que
palmeirenses, corintianos, são paulinos, gremistas, colorados, flamenguistas,
fluminenses, vascaínos, Atleticanos e... é melhor parar por aqui (vale mais
esquecer a muitos que a alguns poucos – acho mais educado), suam, gritam,
xingam, sofrem, se organizam, falam mau do juiz, da bola, do bandeirinha, do
atacante, do goleiro, dos zagueiros, do técnico, da CBF e, vez ou outra, saem
em luta campal com os torcedores do time adversário.
Andam pelas ruas ostentando a camisa do seu clube predileto,
e assim o fazem na alegria e na tristeza, comemorando quando seu time consegue
voltar à série mais importante, esquecendo que só foi capaz de conquistar tal
vitória por que foi vergonhosamente rebaixado.
Tudo isso parece ininteligível quando visto pelo “lado de
fora”, mas, certamente, cada torcedor não é mais que “o lado de fora” do time
adversário.
Algo mais nos chama a atenção? Claro! Os jogadores...
Trata-se, como se diz pelas ruas, de profissionais e, por isso mesmo, só
eventualmente são torcedores dos times para os quais jogam. São soldados da
fortuna. Vencer a guerra não significa a paz. Na verdade significa ser
contratado por outro “exército” mais poderoso, com salários maiores e, quem
sabe?, na temporada seguinte ajudar a derrotar a equipe pela qual suou a camisa
no ano anterior. E o que dizer dos técnicos? Não há necessidade de comentar,
não é mesmo?
De qualquer forma, na conversa que se desenrola pelos botecos
e entre as cervejas, os torcedores fazem suas análises e imaginam seus times
contratando atletas competentes em busca da vitória. A lógica que reúne
torcedores numa mesma identidade, não reúne seus atletas, técnicos e toda a
parafernália que assegura a existência dos campeonatos, clubes etc.
E o poder? Ora, o poder vai se realizar pela via dos
aplausos, das vaias, dos xingamentos e da presença (ou ausência) nos estádios.
Se dará, ainda, de forma mais sistemática, pelos grupos de pressão formados
pelas torcidas organizadas. Mas... o mais importante: com grito ou sem grito,
com batucada ou no silêncio, com a presença ou com a ausência, torcida não
joga, não apita, não treina. Torcida torce...
Xingamos o zagueiro mau posicionado, o atacante que perde a
linha da bola, o batedor de faltas que joga longe a bola do pênalti, o goleiro
que deixa o gol a descoberto, mas somos só torcedores: não defendemos, não
atacamos, não cobramos as faltas... nem mesmo apitamos ou levantamos as
bandeirinhas. E nosso time ganha, perde, empata, ganha o campeonato, é
rebaixado ou, simplesmente, passa desapercebido.
E vem a segunda feira e lá estamos junto aos companheiros de
trabalho, suportando os achaques ou provocando os adversários.
Tudo isso (e, claro, muito mais... mas vou parar por aqui:
pouco ou nada entendo de futebol ou qualquer outro tipo de esporte para
continuar nessa digressão sem fim) só se assemelha às guerras se a entendermos
como espetáculo, mas, bem como os mega espetáculos carnavalescos em São Paulo e
Rio de Janeiro, nem futebol nem carnaval vivem sem que milhares e milhares de
pessoas se movimentem no interior dessas manifestações como quem vive grandes
paixões, sendo que os momentos felizes serão, sempre, justificadores do
sofrimento, e o sofrimento um ponto de inflexão na conquista dos tais dos
momentos felizes.
Foi no meio de tantas e tantas digressões em torno do futebol
e inferências do que ocorre em tantos outros países com os torcedores de tantos
outros esportes de massa que resolvi fazer uma rápida pesquisa internética e
descobri que: o futebol, o rugby, o basquete, o vôlei e o basebol são esportes
praticados, no limite, a partir do século XVIII, sendo que alguns deles foram
criados já no século XIX e, melhor que isso, a prática dos esportes que
mobilizam as massas é um fenômeno característico do século XX, concomitante à
difusão do radio e, posteriormente, da televisão.
Tal como a associação dos esportes com as práticas de guerra,
estou aqui desdobrando as inferências, indicando a possibilidade de discutirmos
a relação entre tais esportes e as formações e consolidações dos Estados
Nacionais, da chamada identidade de massa, um certo tipo de identidade laica
que ultrapassa o significado de igreja e redimensiona o legado romano da
relação entre o pão e o circo.
Vale lembrar, para não deixar que as inferências se percam em
generalizações inúteis, que a territorialidade que identifica os torcedores não
necessariamente coincidem com a territorialidade de estado. Trata-se, mais que
uma simplória e reducionista associação com a ideia de nação, de um exercício
coletivo que nos ensina a viver a ideia de democracia, tal como se consolidou
no chamado mundo ocidental, no transcorrer do século XX. Tal exercício toma
novas relações escalares quando os campeonatos mundiais exigem a presença das
equipes chamadas “seleções nacionais”. Assim, os símbolos de estado que se
confundem como símbolos da nação (bandeiras, cores, hinos, identidades), vão se
cruzar numa mesma arena – e no Brasil o sonho de derrotar os Argentinos se
reproduz a cada partida.
Os impasses políticos: poder, revolução e conservadorismo
Uma outra digressão – sei que o texto está ficando
demasiadamente longo, mas não consigo resistir à tentação – no que se refere ao
exercício do poder poderia ser feita tendo como referência o embate entre Lenin
e Rosa de Luxemburgo no que se refere ao partido do proletariado, à ditadura do
mesmo proletariado e, por fim, e o mais importante, à proposição dos sovietes
como um exercício de poder direto, no controle da produção, do consumo e das
relações supra estruturais. Vale lembrar que todo esse processo, à medida que a
revolução bolchevique avança e que o sovietes se tornam, de fato, o próprio
estado, o exercício de poder se metamorfoseia naquilo que seria seu significado
mais reacionário: na necessidade de preservar a revolução, os sovietes garantem
a contra revolução e se tornam o ponto central da burocracia.
Em nosso país o exercício do poder enquanto uma experiência
popular, aqui fazendo uso da minha memória, é coisa de muito tempo. Lembro-me
do que fazíamos no transcorrer do domínio militar e do esforço em organizar as
comunidades de bairro, as escolas, os sindicatos e toda ou qualquer forma de
coletivismo (inclusive no interior do cooperativismo) numa maneira de exercer
poder por fora e para além do Estado.
Essa experiência tomou conta de todas as preocupações provocadas
pelos anos que se seguiram à chamada democratização. A tal da democracia
tornou-se a forma mais eficaz de absorver a maior parte dos matizes ideológicos
com os quais os ditadores tinham dificuldade em coabitar. Assim, sejam os
sacerdotes da chamada teologia da libertação, os militantes das organizações de
esquerda então na clandestinidade ou, simplesmente, a vanguarda artística que
escrevia, pintava e cantava em nome da esquerda, fomos cooptados de uma forma
ou de outra pela imagem carregada pela na bandeira da “anistia ampla, geral e
irrestrita”. Entre outras
possibilidades, tratou-se do perdão multilateral que garantiu que os formatos
mais básicos dos fascismos locais sobrevivessem institucionalmente.
Fomos às ruas em busca das “Diretas Já” cantando “Prá não
dizer que não falei das flores” e ali assinamos nosso atestado de óbito. De
agentes políticos clandestinos, misturados entre estudantes, donas de casa,
associações de bairro e sindicatos, tivemos de escolher entre dois caminhos
igualmente terríveis: continuar no exercício do poder, mas, agora, na forma de
funcionário de Estado ou, longe dos embates dos partidos institucionalizados e
de eufemismos como “governabilidade”, nos tornarmos simplesmente eleitores e,
portanto, no limite, torcidas organizadas.
Foi assim que elegemos Lula e associamos a necessidade de
colocar a lógica das relações sindicais como lógica
de Estado e, assim, nos defrontamos, enquanto geração, com a condição de
(funcionários ou torcedores) termos patrocinado a continuidades dos processos
de corrupção que marcam a existência do Estado Nacional em todos os países do
mundo.
Nos sentimos enganados, traídos, mas, na verdade, não
passamos de torcedores. Para nós, o fato de nossos adversários serem igualmente
corruptos não nos torna menos traídos. Imaginávamos que no nosso time nenhum
jogador seria pego no antidoping. Que importa se os bandidos são pegos
cometendo crimes? O que importa, de fato, é que junto com eles estão aqueles
que militaram conosco, que se tornaram funcionários de Estado em nome de
construir uma sociedade mais justa e etc. e tal.
Nos primeiros meses do governo Lula alguns de nós já deu indicação
de que não iriam aceitar o andamento desse processo nos moldes que já nos pareciam
inevitáveis. Traídos, recuamos envergonhados, deixando de lado o fato de que
estávamos nos tornando mais e mais a periferia da torcida desorganizada.
Mantivemos o discurso, mas perdemos o ato político, isto é, deixamos de lado o
exercício do poder.
Assim, vimos que tínhamos nos enganado. O sindicalismo no
poder não é mais que um dos formatos possíveis da existência do capitalismo e
ele é incapaz de superar a sua própria condição estrutural que é garantir que o
capitalista exista e que as formas hegemônicas de exercício de poder
permaneçam. Não há novidades no sindicalismo e a construção do PT, mais que uma
aliança entre as forças de esquerda, foi uma capitulação dos que buscavam
resistir à pura e simples absorção do ato político enquanto ato de Estado.
“Teclando” para ruas, as praças, as bandeiras...
Mas, o século XXI, para além do sindicalismo, do chavismo, da
crise dos papéis podres, nos trouxe a experiência da primavera árabe, dos
indignados, dos que tentaram ocupar Wall Street e as ferramentas internéticas
produzindo, estimulando, organizando, difundindo experiências políticas
absolutamente novas (ou será que ainda estamos colocando vinhos velhos em odres
novos? Para que ninguém esqueça, essa referência à idade dos vinhos e de seus
odres é uma citação bíblica).
Vejamos o caso dos indignados e suas derivações. A proposição
teve início da França, com o manifesto escrito por Stéphane Hessel (Indignez
Vous, foi o título em francês), um antigo militante da resistência francesa que
chegou a servir a De Gaulle em Londres e que, já no final da vida (93 anos) e
advogando o direito dos mais velhos em tornar público o que lhes vêm à mente,
faz profundas críticas à maneira pela qual a sociedade capitalista se realiza
na França e no restante da Europa e do Mundo. Apesar de ter ficado semanas na
lista dos mais vendidos, a proposição de Hessel iria tomar forma primeiramente
na Espanha, com o movimento dos Indignados.
É nesse ponto, e junto com o que ficou conhecido como
“primavera árabe”, que o poder das
ferramentas internéticas será colocado em evidência. Incapazes de
controlar a relação interpessoal que, até então, se realizava nos bares, nas
esquinas e nas ruas (o fundamento dessas relações e seus limites já foi
devidamente descrito por Chico Buarque e Milton Nascimento no clássico “O que
Será” ou “À Flor da Pele”), a internet torna possível algum tipo de privacidade
em meio à ação pública direta. Reuniões, manifestações, divulgação de textos,
pessoas, candidatos... vão utilizando os telefones celulares e se multiplicando
rapidamente para centenas de milhares de pessoas. Obama faz sua campanha usando
o face book, os tiranos árabes são substituídos (no geral, por outros) pela
força das manifestações convocadas pelo
twitter e assim por diante. A panfletagem se torna o que hoje de denomina de
“ação viral”.
De qualquer maneira, o importante até o momento é que o uso
das novas tecnologias não interferiu, de forma direta, nas formas de
organização do poder dos indivíduos e suas comunidades. As relações tribais
continuam definindo parcela considerável dos identificadores sociais, e as
ferramentas de última geração acabam se tornando, também, o melhor caminho para
se garantir os valores culturais que constituem o amálgama e os elementos de
ruptura dos povos do chamado oriente médio. Creio que a fórmula pode ser válida
se olharmos para as revoluções socialistas na África, para os processos de
intensa urbanização na América Latina ou, ainda, para o Tea Party americano, a
opus dei na Espanha, ou a família Le Penn na França e o movimento neo nazista
na Alemanha. Paremos por aqui que mais exemplos não serviriam mais que para
perdermos o fio da meada.
Assim, retomando a ideia do odre novo para vinho velho, o que
não se pode negar é que as experiências estão se realizando, pessoas vão às
ruas, reivindicam e voltam para suas casas, agora munidos de um telefone, um
canal de internet, uma ferramenta de comunicação relativamente barata para que
o lamento continue reverberando por dias e dias sem parar. Será necessário
aguardar para sabermos como tais experiências não se tornarão somente partidos
institucionais como o que está ocorrendo hoje na Grécia e com o “Podemos” na Espanha, ou com o fim das alegorias
poéticas que identificaram a primavera árabe.
Lembro-me agora da ex-militante do ETA (acrônimo que
identifica o movimento armado que lutou pela ruptura do território Basco do
domínio espanhol) que, já passando dos 70 anos, ao ser despejada de sua casa em
nome da crise banqueira, suicida-se em um ato absolutamente pessoal e público,
provocando a indignação dos espanhóis e de toda a Comunidade Europeia em
relação às políticas sociais na Espanha. Nada mais que um exemplo de como, os
movimentos avançam e recuam, gritam, protestam, tomam as praças, criam e
recriam seus heróis e suas vítimas, mas, ainda, o que parece se querer é que os
governos mudem, o que, em outras palavras, o que se quer é moralizar o que já
existe.
Assumir o poder, ou, porque nem mesmo falo mau dessa
classe média que clama pela volta dos militares.
Ainda permanecemos distantes da gestão das escolas de nossos
filhos, dos hospitais que dizem cuidar de nossa saúde, da gestão das águas, das
terras, dos alimentos. Se ainda é possível afirmar que, de alguma maneira, o
trabalho manual e o intelectual ainda preservam suas profundas diferenças, vale
lembrar que tanto um quanto outro e, para milhões de trabalhadores, de forma
absolutamente imbricada, dia após dia,
têm se tornado nada mais que trabalho assalariado e, nesse sentido, até mesmo
protestar já faz parte da circulação geral de mercadorias e, portanto, da
realização efetiva da mais valia em lucro e do fortalecimento dos poderes
contra os quais protestamos.
Assim, mais uma vez retomando a grande tradição francesa em
criar meios de mobilização social, vale lembrar Zola e seu “Eu Acuso!”. A quem
eu acusaria? Aos brancos pequeno burgueses que saem às ruas reivindicando a
volta dos militares? Aos Coxinhas e a todos os “salgadinhos” dos chamados
bairros de classe média de nossas metrópoles? Àqueles que gritam contra a
corrupção, mas nem mesmo sabem o que significa tal palavra em seu dia a dia? Ao
Partido da Imprensa Golpista? Bem... todos esses personagens estão sendo
acusados e denunciados, minuto a minuto, pelos meios mais ou menos
alternativos. Assim também se multiplicam as acusações ao PT e a seus funcionários,
ao Lula e à Dilma... mas, para os fins a que se destinam essas reflexões, creio
que tais denúncias só teriam o papel de se acumular na lixeira geral do
esquecimento midiático. No momento, estou mais interessado em acusar o
esquecimento da esquerda de ser o ato político, sempre, um exercício constante
de se realizar o poder. Reduzir o ato de esquerda em um ato de políticas
públicas de Estado é tentar garantir que aqueles que deveriam exercer o poder
vejam o mundo com os olhos do torcedor.
Algo para fazer o papel de conclusão
Assim, retomo aqui a proposição original (esporte como um exercício
ou uma figuração de guerra) e seus desdobramentos (o esporte de massas como um
exercício político de subsunção aos fundamentos do Estado Moderno) para retomar
o apelo político fundamental: é necessário colocar em questão o que entendemos
por democracia e o sentido geral de se pertencer à esquerda. Afinal, creio que
temos de superar os limites impostos pela criação, desenvolvimento, amadurecimento
e consolidação do Estado Moderno.
Vale lembrar aqui o interessante trabalho de Franco Moretti
(Atlas do Romance Europeu), no qual ele nos observa as radicais mudanças no
“contar histórias” do século XIX, mostrando que o movimento dos personagens
buscavam consolidar uma identidade que ainda não se tinha, isto é, sair da
escala das aldeias e bairros e se associar à noção e ao pertencimento ao
Estado.
Trata-se, portanto, de uma relação de pertencimento e poder
escalarmente não resolvida. As grandes cidades foram sendo divididas numa
associação direta entre a diferencialidade de renda e a divisão técnica do
trabalho, em muitos casos destruindo as relações de vizinhança e solidariedade
transposta das relações originadas nas aldeias. Assim, o poder sobre o micro (a
casa, a rua, os amigos, a família, a igreja) já não reverbera para a “polis”,
salvo na dimensão cartesiana de democracia, onde o ápice da conquista virou a
simplória relação de “um homem (depois também as mulheres) um voto”. Tratou-se,
finalmente da conquista da capitulação.
Política, bem como a circulação geral das mercadorias
(incluindo aí a força de trabalho), das informações e da paixões se fundem na
escala planetária que, criada pelo colonialismo europeu, tornou-se, definitiva
e inexoravelmente, o que chamamos de capitalismo.
Assim, fica a questão: é preciso retornar aos bairros, às
escolas, ao chão da fábrica, ao exercício direto e cotidiano do poder, para que
novos formatos de relação política surjam para além das reformas políticas dos
legislativos, das articulações do executivo ou dos aceites condescendentes do
judiciário, ou, em outras palavras, para além e mais profundamente que o credo
geral numa democracia fundada no princípio hegeliano do Estado de Direito.
Trata-se, de fato, de redefinir o caminho do que temos aceitado, genericamente,
como processo civilizatório. Voltando ao princípio: não basta torcer, é preciso
jogar.
[1] A
meu pedido, Jorge Barcellos leu esse texto leu esse texto e fez alguns
comentários mais que pertinentes. No primeiro deles me chamou a atenção para a
necessidade de conceituar “esquerdas”. Procurei um lugar para fazer isso que
dispensasse notas de rodapé e, como vocês vêm, não achei. Fica então essa
tentativa de conceituar que, na pior da hipóteses, já vai nos ajudar a clarear
o que virá nas próximas páginas: as esquerdas, para os efeitos desse texto, é a
expressão que estou utilizando para identificar pessoas, grupos, partidos,
instituições ou quaisquer outras formas de organização social cuja ação, de
forma consciente e deliberada (ou não), busca a superação dos fundamentos
sociais do capitalismo. Trata-se, portanto, de um leque de possibilidades cuja
maioria me é profundamente estranha e contra as quais me indisponho todos os
dias. De qualquer forma, considerando a tradição da expressão “de esquerda” no
contexto da política, o fato de eu discordar não torna ninguém “de direita”.