terça-feira, 31 de março de 2015

Futebol, política, democracia e delírios correlatos.


Primeiras palavras

O que vem por aí não é um texto acadêmico. Trata-se de algo que se aproximou de uma crônica, mesmo que eu saiba muito bem que não sou um cronista. Por outro lado, não fiz bibliografia, não citei dentro das normas ABNT, não escrevi para publicar numa revista qualificada e, portanto, trata-se da mais simples reflexão pessoal que quero compartilhar com os amigos e com quem quiser se dar ao trabalho de lê-las.
Um segundo ponto a realçar é para aqueles que me conhecem mais de perto: todos sabem que não entendo absolutamente nada de futebol e, portanto, vão estranhar o título desses comentários. Não se assustem! Como verão, meus comentários sobre a prática desse esporte (e de outros) não exigiram mais que os limites dados pela minha ignorância sobre o assunto. 
Como terceiro ponto, um pequeno roteiro de leitura: a ideia geral desse texto é fazer uma crítica às esquerdas[1] e à sua condição geral de ter se subordinado aos fundamentos das relações de classe que sustentam a existência do Estado. Assim, futebol, democracia e coisas do tipo estão aqui somente para ajudar na construção dos argumentos.

Entrando no assunto: futebol e guerra

Bom... vamos direto ao primeiro elemento na construção desses argumentos: há muito tempo li ou ouvi algo (já não me lembro muito bem...) sobre a relação entre os esportes e a formas do exercício da guerra. A partir dessa leitura (ou conversa), passei a imaginar que tipo de guerra representa o vôlei, o futebol, o basquete e assim por diante. Bom... não posso dizer que consegui identificar em detalhe tais relações. Assim, se posso imaginar que no vôlei os soldados não se tocam, só jogam “bombas” no campo inimigo e que no futebol e no rúgbi nos aproximamos muito das guerras de infantaria, não é difícil afirmar que tudo isso é uma simplificação e que esporte é esporte e guerra é guerra.

O segundo tema: Saramago nos convida a discutir democracia e algumas digressões sobre o papel do Estado

Agora vamos ao segundo elemento da construção dos argumentos: nos últimos tempos a associação entre os esportes e as guerras tem me levado à construção de muitas outras digressões e não farei aqui mais que compartilhar algumas delas, retomando um debate que, entre outros temas e pessoas, foi proposto por Saramago: é preciso colocar em discussão o que já nos parece óbvio e resolvido e, dentre tais temas, Democracia é, sem dúvida, um deles (cito de memória e, por isso, confio na ideia, mas desconfio da construção frasal).
Ao tocar nesse delicado ponto que é a democracia, um primeiro desdobramento é, necessariamente, refletir sobre a maneira como, nos dias de hoje, exercitamos o poder (usar a expressão “poder político” sempre me pareceu algo pleonástico) e o resultado, em linhas gerais é que num primeiro momento votamos, num segundo voltamos a votar e, no terceiro, lá estamos nós votando. Trata-se da tal da democracia representativa (não seria isso um eufemismo?) que coloca nas mãos de alguns o poder sobre todos (se é que isso é possível). Claro... vem aí a discussão sobre o equilíbrio dos poderes, sobre o papel do judiciário, do legislativo e tudo o mais: é justamente aqui que o esporte parece vir em minha ajuda.

De volta ao futebol

Juntando o primeiro tema com o segundo, algumas imagens, como todo brasileiro mais ou menos ligado nos fatos e nas notícias sobre os fatos, têm insistido em povoar meus piores sonhos (aqueles que tenho quando estou acordado): as massas festejantes ou reclamantes num campo de futebol e nas ruas desse meu Brasil (vou mudar as escalas um pouco mais adiante). Eis que palmeirenses, corintianos, são paulinos, gremistas, colorados, flamenguistas, fluminenses, vascaínos, Atleticanos e... é melhor parar por aqui (vale mais esquecer a muitos que a alguns poucos – acho mais educado), suam, gritam, xingam, sofrem, se organizam, falam mau do juiz, da bola, do bandeirinha, do atacante, do goleiro, dos zagueiros, do técnico, da CBF e, vez ou outra, saem em luta campal com os torcedores do time adversário.
Andam pelas ruas ostentando a camisa do seu clube predileto, e assim o fazem na alegria e na tristeza, comemorando quando seu time consegue voltar à série mais importante, esquecendo que só foi capaz de conquistar tal vitória por que foi vergonhosamente rebaixado.
Tudo isso parece ininteligível quando visto pelo “lado de fora”, mas, certamente, cada torcedor não é mais que “o lado de fora” do time adversário.
Algo mais nos chama a atenção? Claro! Os jogadores... Trata-se, como se diz pelas ruas, de profissionais e, por isso mesmo, só eventualmente são torcedores dos times para os quais jogam. São soldados da fortuna. Vencer a guerra não significa a paz. Na verdade significa ser contratado por outro “exército” mais poderoso, com salários maiores e, quem sabe?, na temporada seguinte ajudar a derrotar a equipe pela qual suou a camisa no ano anterior. E o que dizer dos técnicos? Não há necessidade de comentar, não é mesmo?
De qualquer forma, na conversa que se desenrola pelos botecos e entre as cervejas, os torcedores fazem suas análises e imaginam seus times contratando atletas competentes em busca da vitória. A lógica que reúne torcedores numa mesma identidade, não reúne seus atletas, técnicos e toda a parafernália que assegura a existência dos campeonatos, clubes etc.
E o poder? Ora, o poder vai se realizar pela via dos aplausos, das vaias, dos xingamentos e da presença (ou ausência) nos estádios. Se dará, ainda, de forma mais sistemática, pelos grupos de pressão formados pelas torcidas organizadas. Mas... o mais importante: com grito ou sem grito, com batucada ou no silêncio, com a presença ou com a ausência, torcida não joga, não apita, não treina. Torcida torce...
Xingamos o zagueiro mau posicionado, o atacante que perde a linha da bola, o batedor de faltas que joga longe a bola do pênalti, o goleiro que deixa o gol a descoberto, mas somos só torcedores: não defendemos, não atacamos, não cobramos as faltas... nem mesmo apitamos ou levantamos as bandeirinhas. E nosso time ganha, perde, empata, ganha o campeonato, é rebaixado ou, simplesmente, passa desapercebido.
E vem a segunda feira e lá estamos junto aos companheiros de trabalho, suportando os achaques ou provocando os adversários.
Tudo isso (e, claro, muito mais... mas vou parar por aqui: pouco ou nada entendo de futebol ou qualquer outro tipo de esporte para continuar nessa digressão sem fim) só se assemelha às guerras se a entendermos como espetáculo, mas, bem como os mega espetáculos carnavalescos em São Paulo e Rio de Janeiro, nem futebol nem carnaval vivem sem que milhares e milhares de pessoas se movimentem no interior dessas manifestações como quem vive grandes paixões, sendo que os momentos felizes serão, sempre, justificadores do sofrimento, e o sofrimento um ponto de inflexão na conquista dos tais dos momentos felizes.
Foi no meio de tantas e tantas digressões em torno do futebol e inferências do que ocorre em tantos outros países com os torcedores de tantos outros esportes de massa que resolvi fazer uma rápida pesquisa internética e descobri que: o futebol, o rugby, o basquete, o vôlei e o basebol são esportes praticados, no limite, a partir do século XVIII, sendo que alguns deles foram criados já no século XIX e, melhor que isso, a prática dos esportes que mobilizam as massas é um fenômeno característico do século XX, concomitante à difusão do radio e, posteriormente, da televisão.
Tal como a associação dos esportes com as práticas de guerra, estou aqui desdobrando as inferências, indicando a possibilidade de discutirmos a relação entre tais esportes e as formações e consolidações dos Estados Nacionais, da chamada identidade de massa, um certo tipo de identidade laica que ultrapassa o significado de igreja e redimensiona o legado romano da relação entre o pão e o circo.
Vale lembrar, para não deixar que as inferências se percam em generalizações inúteis, que a territorialidade que identifica os torcedores não necessariamente coincidem com a territorialidade de estado. Trata-se, mais que uma simplória e reducionista associação com a ideia de nação, de um exercício coletivo que nos ensina a viver a ideia de democracia, tal como se consolidou no chamado mundo ocidental, no transcorrer do século XX. Tal exercício toma novas relações escalares quando os campeonatos mundiais exigem a presença das equipes chamadas “seleções nacionais”. Assim, os símbolos de estado que se confundem como símbolos da nação (bandeiras, cores, hinos, identidades), vão se cruzar numa mesma arena – e no Brasil o sonho de derrotar os Argentinos se reproduz a cada partida.

Os impasses políticos: poder, revolução e conservadorismo

Uma outra digressão – sei que o texto está ficando demasiadamente longo, mas não consigo resistir à tentação – no que se refere ao exercício do poder poderia ser feita tendo como referência o embate entre Lenin e Rosa de Luxemburgo no que se refere ao partido do proletariado, à ditadura do mesmo proletariado e, por fim, e o mais importante, à proposição dos sovietes como um exercício de poder direto, no controle da produção, do consumo e das relações supra estruturais. Vale lembrar que todo esse processo, à medida que a revolução bolchevique avança e que o sovietes se tornam, de fato, o próprio estado, o exercício de poder se metamorfoseia naquilo que seria seu significado mais reacionário: na necessidade de preservar a revolução, os sovietes garantem a contra revolução e se tornam o ponto central da burocracia.
Em nosso país o exercício do poder enquanto uma experiência popular, aqui fazendo uso da minha memória, é coisa de muito tempo. Lembro-me do que fazíamos no transcorrer do domínio militar e do esforço em organizar as comunidades de bairro, as escolas, os sindicatos e toda ou qualquer forma de coletivismo (inclusive no interior do cooperativismo) numa maneira de exercer poder por fora e para além do Estado.
Essa experiência tomou conta de todas as preocupações provocadas pelos anos que se seguiram à chamada democratização. A tal da democracia tornou-se a forma mais eficaz de absorver a maior parte dos matizes ideológicos com os quais os ditadores tinham dificuldade em coabitar. Assim, sejam os sacerdotes da chamada teologia da libertação, os militantes das organizações de esquerda então na clandestinidade ou, simplesmente, a vanguarda artística que escrevia, pintava e cantava em nome da esquerda, fomos cooptados de uma forma ou de outra pela imagem carregada pela na bandeira da “anistia ampla, geral e irrestrita”.  Entre outras possibilidades, tratou-se do perdão multilateral que garantiu que os formatos mais básicos dos fascismos locais sobrevivessem institucionalmente.
Fomos às ruas em busca das “Diretas Já” cantando “Prá não dizer que não falei das flores” e ali assinamos nosso atestado de óbito. De agentes políticos clandestinos, misturados entre estudantes, donas de casa, associações de bairro e sindicatos, tivemos de escolher entre dois caminhos igualmente terríveis: continuar no exercício do poder, mas, agora, na forma de funcionário de Estado ou, longe dos embates dos partidos institucionalizados e de eufemismos como “governabilidade”, nos tornarmos simplesmente eleitores e, portanto, no limite, torcidas organizadas.
Foi assim que elegemos Lula e associamos a necessidade de colocar a lógica das relações sindicais como lógica de Estado e, assim, nos defrontamos, enquanto geração, com a condição de (funcionários ou torcedores) termos patrocinado a continuidades dos processos de corrupção que marcam a existência do Estado Nacional em todos os países do mundo.
Nos sentimos enganados, traídos, mas, na verdade, não passamos de torcedores. Para nós, o fato de nossos adversários serem igualmente corruptos não nos torna menos traídos. Imaginávamos que no nosso time nenhum jogador seria pego no antidoping. Que importa se os bandidos são pegos cometendo crimes? O que importa, de fato, é que junto com eles estão aqueles que militaram conosco, que se tornaram funcionários de Estado em nome de construir uma sociedade mais justa e etc. e tal.
Nos primeiros meses do governo Lula alguns de nós já deu indicação de que não iriam aceitar o andamento desse processo nos moldes que já nos pareciam inevitáveis. Traídos, recuamos envergonhados, deixando de lado o fato de que estávamos nos tornando mais e mais a periferia da torcida desorganizada. Mantivemos o discurso, mas perdemos o ato político, isto é, deixamos de lado o exercício do poder.
Assim, vimos que tínhamos nos enganado. O sindicalismo no poder não é mais que um dos formatos possíveis da existência do capitalismo e ele é incapaz de superar a sua própria condição estrutural que é garantir que o capitalista exista e que as formas hegemônicas de exercício de poder permaneçam. Não há novidades no sindicalismo e a construção do PT, mais que uma aliança entre as forças de esquerda, foi uma capitulação dos que buscavam resistir à pura e simples absorção do ato político enquanto ato de Estado.

“Teclando” para ruas, as praças, as bandeiras...

Mas, o século XXI, para além do sindicalismo, do chavismo, da crise dos papéis podres, nos trouxe a experiência da primavera árabe, dos indignados, dos que tentaram ocupar Wall Street e as ferramentas internéticas produzindo, estimulando, organizando, difundindo experiências políticas absolutamente novas (ou será que ainda estamos colocando vinhos velhos em odres novos? Para que ninguém esqueça, essa referência à idade dos vinhos e de seus odres é uma citação bíblica).
Vejamos o caso dos indignados e suas derivações. A proposição teve início da França, com o manifesto escrito por Stéphane Hessel (Indignez Vous, foi o título em francês), um antigo militante da resistência francesa que chegou a servir a De Gaulle em Londres e que, já no final da vida (93 anos) e advogando o direito dos mais velhos em tornar público o que lhes vêm à mente, faz profundas críticas à maneira pela qual a sociedade capitalista se realiza na França e no restante da Europa e do Mundo. Apesar de ter ficado semanas na lista dos mais vendidos, a proposição de Hessel iria tomar forma primeiramente na Espanha, com o movimento dos Indignados.
É nesse ponto, e junto com o que ficou conhecido como “primavera árabe”, que o poder das  ferramentas internéticas será colocado em evidência. Incapazes de controlar a relação interpessoal que, até então, se realizava nos bares, nas esquinas e nas ruas (o fundamento dessas relações e seus limites já foi devidamente descrito por Chico Buarque e Milton Nascimento no clássico “O que Será” ou “À Flor da Pele”), a internet torna possível algum tipo de privacidade em meio à ação pública direta. Reuniões, manifestações, divulgação de textos, pessoas, candidatos... vão utilizando os telefones celulares e se multiplicando rapidamente para centenas de milhares de pessoas. Obama faz sua campanha usando o face book, os tiranos árabes são substituídos (no geral, por outros) pela força das manifestações  convocadas pelo twitter e assim por diante. A panfletagem se torna o que hoje de denomina de “ação viral”.
De qualquer maneira, o importante até o momento é que o uso das novas tecnologias não interferiu, de forma direta, nas formas de organização do poder dos indivíduos e suas comunidades. As relações tribais continuam definindo parcela considerável dos identificadores sociais, e as ferramentas de última geração acabam se tornando, também, o melhor caminho para se garantir os valores culturais que constituem o amálgama e os elementos de ruptura dos povos do chamado oriente médio. Creio que a fórmula pode ser válida se olharmos para as revoluções socialistas na África, para os processos de intensa urbanização na América Latina ou, ainda, para o Tea Party americano, a opus dei na Espanha, ou a família Le Penn na França e o movimento neo nazista na Alemanha. Paremos por aqui que mais exemplos não serviriam mais que para perdermos o fio da meada.
Assim, retomando a ideia do odre novo para vinho velho, o que não se pode negar é que as experiências estão se realizando, pessoas vão às ruas, reivindicam e voltam para suas casas, agora munidos de um telefone, um canal de internet, uma ferramenta de comunicação relativamente barata para que o lamento continue reverberando por dias e dias sem parar. Será necessário aguardar para sabermos como tais experiências não se tornarão somente partidos institucionais como o que está ocorrendo hoje na Grécia e com o “Podemos”  na Espanha, ou com o fim das alegorias poéticas que identificaram a primavera árabe.
Lembro-me agora da ex-militante do ETA (acrônimo que identifica o movimento armado que lutou pela ruptura do território Basco do domínio espanhol) que, já passando dos 70 anos, ao ser despejada de sua casa em nome da crise banqueira, suicida-se em um ato absolutamente pessoal e público, provocando a indignação dos espanhóis e de toda a Comunidade Europeia em relação às políticas sociais na Espanha. Nada mais que um exemplo de como, os movimentos avançam e recuam, gritam, protestam, tomam as praças, criam e recriam seus heróis e suas vítimas, mas, ainda, o que parece se querer é que os governos mudem, o que, em outras palavras, o que se quer é moralizar o que já existe.

Assumir o poder, ou, porque nem mesmo falo mau dessa classe média que clama pela volta dos militares.

Ainda permanecemos distantes da gestão das escolas de nossos filhos, dos hospitais que dizem cuidar de nossa saúde, da gestão das águas, das terras, dos alimentos. Se ainda é possível afirmar que, de alguma maneira, o trabalho manual e o intelectual ainda preservam suas profundas diferenças, vale lembrar que tanto um quanto outro e, para milhões de trabalhadores, de forma absolutamente imbricada,  dia após dia, têm se tornado nada mais que trabalho assalariado e, nesse sentido, até mesmo protestar já faz parte da circulação geral de mercadorias e, portanto, da realização efetiva da mais valia em lucro e do fortalecimento dos poderes contra os quais protestamos.
Assim, mais uma vez retomando a grande tradição francesa em criar meios de mobilização social, vale lembrar Zola e seu “Eu Acuso!”. A quem eu acusaria? Aos brancos pequeno burgueses que saem às ruas reivindicando a volta dos militares? Aos Coxinhas e a todos os “salgadinhos” dos chamados bairros de classe média de nossas metrópoles? Àqueles que gritam contra a corrupção, mas nem mesmo sabem o que significa tal palavra em seu dia a dia? Ao Partido da Imprensa Golpista? Bem... todos esses personagens estão sendo acusados e denunciados, minuto a minuto, pelos meios mais ou menos alternativos. Assim também se multiplicam as acusações ao PT e a seus funcionários, ao Lula e à Dilma... mas, para os fins a que se destinam essas reflexões, creio que tais denúncias só teriam o papel de se acumular na lixeira geral do esquecimento midiático. No momento, estou mais interessado em acusar o esquecimento da esquerda de ser o ato político, sempre, um exercício constante de se realizar o poder. Reduzir o ato de esquerda em um ato de políticas públicas de Estado é tentar garantir que aqueles que deveriam exercer o poder vejam o mundo com os olhos do torcedor.

Algo para fazer o papel de conclusão

Assim, retomo aqui a proposição original (esporte como um exercício ou uma figuração de guerra) e seus desdobramentos (o esporte de massas como um exercício político de subsunção aos fundamentos do Estado Moderno) para retomar o apelo político fundamental: é necessário colocar em questão o que entendemos por democracia e o sentido geral de se pertencer à esquerda. Afinal, creio que temos de superar os limites impostos pela criação, desenvolvimento, amadurecimento e consolidação do Estado Moderno.
Vale lembrar aqui o interessante trabalho de Franco Moretti (Atlas do Romance Europeu), no qual ele nos observa as radicais mudanças no “contar histórias” do século XIX, mostrando que o movimento dos personagens buscavam consolidar uma identidade que ainda não se tinha, isto é, sair da escala das aldeias e bairros e se associar à noção e ao pertencimento ao Estado.
Trata-se, portanto, de uma relação de pertencimento e poder escalarmente não resolvida. As grandes cidades foram sendo divididas numa associação direta entre a diferencialidade de renda e a divisão técnica do trabalho, em muitos casos destruindo as relações de vizinhança e solidariedade transposta das relações originadas nas aldeias. Assim, o poder sobre o micro (a casa, a rua, os amigos, a família, a igreja) já não reverbera para a “polis”, salvo na dimensão cartesiana de democracia, onde o ápice da conquista virou a simplória relação de “um homem (depois também as mulheres) um voto”. Tratou-se, finalmente da conquista da capitulação.
Política, bem como a circulação geral das mercadorias (incluindo aí a força de trabalho), das informações e da paixões se fundem na escala planetária que, criada pelo colonialismo europeu, tornou-se, definitiva e inexoravelmente, o que chamamos de capitalismo.
Assim, fica a questão: é preciso retornar aos bairros, às escolas, ao chão da fábrica, ao exercício direto e cotidiano do poder, para que novos formatos de relação política surjam para além das reformas políticas dos legislativos, das articulações do executivo ou dos aceites condescendentes do judiciário, ou, em outras palavras, para além e mais profundamente que o credo geral numa democracia fundada no princípio hegeliano do Estado de Direito. Trata-se, de fato, de redefinir o caminho do que temos aceitado, genericamente, como processo civilizatório. Voltando ao princípio: não basta torcer, é preciso jogar.



           


[1] A meu pedido, Jorge Barcellos leu esse texto leu esse texto e fez alguns comentários mais que pertinentes. No primeiro deles me chamou a atenção para a necessidade de conceituar “esquerdas”. Procurei um lugar para fazer isso que dispensasse notas de rodapé e, como vocês vêm, não achei. Fica então essa tentativa de conceituar que, na pior da hipóteses, já vai nos ajudar a clarear o que virá nas próximas páginas: as esquerdas, para os efeitos desse texto, é a expressão que estou utilizando para identificar pessoas, grupos, partidos, instituições ou quaisquer outras formas de organização social cuja ação, de forma consciente e deliberada (ou não), busca a superação dos fundamentos sociais do capitalismo. Trata-se, portanto, de um leque de possibilidades cuja maioria me é profundamente estranha e contra as quais me indisponho todos os dias. De qualquer forma, considerando a tradição da expressão “de esquerda” no contexto da política, o fato de eu discordar não torna ninguém “de direita”.