Quem já se acostumou com salas de aula, com a vida de
professor, sabe bem como tudo funciona. Ali, dependendo do dia, mas com alguma
frequência, se ouve confissões, se faz confissões, se entende algo sobre o
mundo do outro. Nesses últimos dias, envolvido em mexer e remexer em projetos
de pesquisa para a Escola Doutoral da Universidade Pedagógica de Moçambique,
fui ouvindo coisas e falando outras, conversando com alunos ou somente
escutando conversa alheia, ou, ainda, ouvindo desabafos como se estivesse
coberto pelas bênçãos de um confessionário católico. Hoje vou transcrever
coisas que ouvi, que me tiraram o sono, que me fizeram pensar na grandiosidade
da tragédia e da comédia humanas, do como, homens absolutamente inseridos em
uma cultura, esquecem sua capacidade de resistência e, em nome de uma vida
melhor, se perdem no desespero daqueles que tenta salvar. Bem... vou tentar
contar algumas dessas histórias.
Na cura da AIDS (ou SIDA, como se diz por aqui)
Não há segredos quanto à prevalência do vírus HIV no
continente africano e, menos ainda, no que se refere à chamada África Austral.
Desde que frequento essas terras tenho visto, às vezes com alguma ênfase,
outras num quase silêncio, o uso dos meios de comunicação de massa procurando
estimular a utilização de preservativos enquanto, pelas conversas com alunos,
observa-se algum despreparo dos meios oficiais no tratamento do assunto. Em
outubro de 2010, por exemplo, justamente entre o primeiro e segundo turno das
eleições que garantiu ao PT mais 4 anos de poder, eu me encontrava por aqui
(não consegui votar no segundo turno) e acompanhei pela imprensa a visita do
então Presidente Lula, inaugurando o primeiro laboratório de produção de
retrovirais do continente, sob a supervisão da FIOCRUZ e a alegria de alguns
moçambicanos. Quando voltei em 2012, já não mais ouvi falar do laboratório e,
pelas últimas informações que recebi, ele já não mais funciona.
Bem... em meio a essa trágica situação, e quando imaginamos
que nada poderá tornar o processo ainda mais doloroso, a realidade se impõe e
vemos que estávamos enganados. Desde 2004, quando das minhas primeiras viagens,
ouço comentários sobre a condição de muitos doentes que, quando percebem que
suas forças estão se esvaindo, se voltam ao curandeirismo local (seja ele o
mais tradicional ou o estimulado pelas igrejas universais que se multiplicam
por aqui), procurando satisfazer os mortos que, segundo se imagina,
descontentes que estão, acabam por retirar dos vivos sua capacidade de viver.
Nos dias de hoje os problemas e pseudo soluções parecem se
multiplicar. Provavelmente, como uma espécie de inferência lógica de que
somente o uso de preservativos pode conter a propagação da doença, pois o vírus
é sexualmente transmissível, há quem creia que não somente é possível
transmitir como, se o parceiro sexual for virgem, o processo de transmissão poderá
“limpar” aquele que já se encontra infectado.
A crença tem se tornado fatal: a busca de virgens (desde
crianças com meses de idade até meninas entrando na puberdade) e a prática do
estupro infantil tem ampliado a tragédia em todos os sentidos. Há momentos em
que vale pensar: de quanto tempo e de quantos mortos se necessitará para que se
possa encontrar o fundo do poço?
Feministas, estupros, casamento e perdão.
Na quinta feira da
semana passada algumas centenas de mulheres se reuniram em frente à Assembleia
da República. Algumas lideranças chegaram a afirmar que, se necessário fosse,
tirariam suas roupas, considerando a ideia de que a nudez das mulheres poderia
derrubar o governo.
Tanta fúria tinha lá sua razão. O congresso havia aprovado,
em primeira avaliação, uma lei que preconizava o seguinte: se uma mulher,
depois de estuprada, casasse com o estuprador, ele seria perdoado e, portanto,
não seria preso.
A proposição chocou as feministas e os defensores dos
direitos humanos. A ideia de transferir para a vítima a responsabilidade sobre
a prisão de seu algoz é, no mínimo, estranha. Bem... as mulheres não tiraram
suas roupas, mas, ao que me pareceu, obrigaram seus deputados a repensar o
assunto. Esperemos....
Planejamento de Estado: aldeias comunais e um povo que
resiste.
Ontem, em meio a debates sobre a precisa identificação de
temas de pesquisa e na tentativa de ajudar os alunos a observarem suas próprias
experiências, lembrei-me de coisas que ouvi, na cidade da Beira, quando lá
estive em 2012.
Não sei se conseguirei dar conta da complexidade do
problema, mas vou, somente, descreve-lo da maneira como o entendi.
Os fato começaram por determinação de Samora Machel, o
grande líder da Revolução Moçambicana, e podem ser resumidos nos seguintes
termos: considerando que cada família vivia distante das demais e com isso
ampliava as dificuldades da presença do estado como provedor de meios para a melhoria
das condições sanitárias, para a disponibilização dos serviços de saúde e o
funcionamento de escolas, o governo começa a estimular, de forma
consideravelmente incisiva, o deslocamento dessas famílias para o que se chamou
de aldeias comunais. A ideia é simples: mais próximos, mais fácil de ajudar.
Acontece, no entanto, que tais famílias viviam distantes
umas das outras e estava nessa geograficidade a condição de viverem seus
valores, suas formas de produção e reprodução da vida.
As aldeias comunais reuniram, numa mesma identidade
territorial 2 ou 3 régulas (lideres espirituais e políticos) e, rapidamente,
alguns começaram a voltar para suas origens, levando “seu povo” consigo. Ou
faziam isso, ou teriam de entregar seus poderes a outros.
Nesse contexto também reclamaram as mulheres: no modelo
tradicional tinham o controle sobre a cozinha, a casa e a machamba (área de
produção agrícola) e a aproximação tornava tudo isso algo coletivo e carregado
de conflitos.
Na outra ponta, temos os homens, sendo que muitos deles
possuíam mais que uma família e, no contexto tradicional, poderiam se deslocar
entre suas casas com facilidade e sem confrontar suas mulheres. A aproximação
colocava-as frente a frente, umas com as outras, e isso destruía o contexto de
família ao qual os homens estavam associados.
Hoje em dia, as aldeias comunais ainda são fonte de muitos
debates e resistência: os sábios do Estado ainda não conseguiram derrubar os
sábios comunitários e a ambiguidade ainda tende a permanecer....
Vale lembrar que, no mesmo contexto e com o objetivo de
facilitar a vida das mulheres – responsáveis que são pela disponibilização da
água dentro de suas casas –, o governo andou perfurando poços artesianos
próximos às casas. Tal ato teria por objetivo evitar que mulheres tivessem de
se deslocar até os rios mais próximos e, assim, abandonar suas casas até três
ou quatro horas todos os dias. Acontece, no entanto, que tais “idas ao rio”
representam para as mulheres o momento do dia em que se sentem livres, em que
podem encontrar-se com seus homens, conversarem entre si e, definitivamente,
água perto de casa é mais um problema que uma solução.