domingo, 27 de setembro de 2015

Manifestação pró-refugiados Calais - 19.09.2015

Denise Pinesso



Atualizado: no sábado
A chuva caía torrencialmente sobre a New Jungle de Calais, no Norte da França, quando comecei a escrever este texto. Na Jungle, a chuva não faz renascer nem vicejar. Ela lava a esperança e afunda os refugiados na lama e no frio da espera.
São milhares de barracas de camping e tendas improvisadas espalhadas por um campo arenoso e úmido. Mais de 3500 seres humanos. Não pude deixar de pensar na miséria que assola milhões de pessoas em meu próprio país.
Finalmente a imprensa tem começado a falar sobre Calais e seus refugiados. Esse pedaço da França, desconhecido da grande maioria dos turistas, é separado da Inglaterra por apenas 35 quilômetros, personificados pelo Canal da Mancha. Aqui, o “Eldorado Inglês” está a apenas 30 minutos de trem. Ou 90 minutos de balsa. E é por essa curta travessia que os refugiados arriscam suas vidas e esperam. Aqui, a questão dos refugiados já dura mais de quinze anos.
Em 1999, após forte pressão da Cruz Vermelha, um centro foi construído na cidade de Sangatte para abrigar refugiados kosovares. Nos anos 2000, os conflitos no Afeganistão, Iraque e Sudão fizeram com que o fluxo de refugiados aumentasse exponencialmente. Sob o pretexto de superpopulação no centro, Nicolas Sarkozy – então ministro do interior – fechou e destruiu a estrutura em 2002, deixando os refugiados desabrigados.
Um campo improvisado, a primeira “jungle” surgiu em Calais numa área de passagem de caminhões que vão para a Inglaterra. Em 2009, o campo foi destruído por Eric Besson, com o objetivo de dissuadir os refugiados de vir para a região e tentar a travessia...
Hoje, a “New Jungle” não para de crescer. Etíopes, eritreanos e sírios vieram se juntar aos afegãos, curdos, iraquianos e sudaneses. Novos campos vem se formando na região, sendo que em Téteghem o poder público está com dificuldades para atuar e regularizar a situação dos refugiados, já que o campo é controlado por uma máfia de passadores.
Meu encontro com a jungle, com o outro, que é espelho, era algo há muito desejado. Sou geógrafa, sou migrante, sou humana. Como não se sensibilizar? Como não participar dos eventos que estão ocorrendo no meu quintal? Como? Como? Como...
A oportunidade se apresentou no último sábado, dia 19 de setembro, numa manifestação de apoio aos refugiados organizada em Calais. Graças ao universo ou como queiram chamar, encontrei Lydie Dubois, uma francesa com um coração enorme que, mesmo sem me conhecer, permitiu que eu dividisse esse momento com ela.
Chegamos ao ponto de encontro antes da manifestação e decidimos caminhar um pouco pela jungle. Podemos ver barracas instaladas sob a rodovia. Um benevolente nos diz: “Essas pessoas acabaram de chegar, há quinze dias não havia nada aqui.” Conforme vamos penetrando no campo, tenho a impressão de que se trata de uma outra dimensão. O estranhamento é total. Não por conta do lixo espalhado pelo terreno, dos (poucos) banheiros químicos na entrada do campo e pelas saídas de água com três ou quatro torneiras cada, utilizadas para higiene pessoal. Pela lama que está por toda parte. Ou pelos olhares desconfiados ou muitas vezes vazios dos homens que circulam por ali. O que não encaixa é ver isso acontecer na Europa, em pleno século 21. Parece que tempo e espaço foram distorcidos de uma forma que é impossível transcrever.
Nos primeiros minutos não soube o que fazer, para onde olhar, como olhar, onde colocar minhas mãos, se sorria, se chorava. Não queria de forma alguma invadir seu território, sua intimidade. Ironia... quem é o estrangeiro?
Não queria incomodar ainda mais. Fotografá-los então, me pareceu absurdo. Me sinto mal. Voltamos ao carro para respirar e buscar cartazes que tínhamos feito com frases de efeito em bom francês. No retorno, mais à vontade, me permitindo viver a experiência, olhares começam a se cruzar, sorrisos começam a ser trocados numa sequência de “HELLOs” e “BONJOURs” que vai revelando outras camadas desse lugar onde vivem pessoas como eu e você.
Caminhando em direção à concentração para a manifestação, encontramos dois jovens afegãos que nos acompanharam durante toda a tarde de sábado: Alli e Majnoun (que depois de um pouco de conversa se tornou Magicnoun, apelido que demos pra ele). Sim, esse menino de 23 anos é mágico. Fala muito bem francês. Articulado, foi a ponte entre nós e seus companheiros, que se expressam em pashtu e inglês. Através dele pudemos ouvir relatos da viagem de quatro meses pelo Irã, Turquia, Grécia, Bulgária, Romênia, Hungria, Áustria e Alemanha, até chegar em Calais. Pudemos conhecer alguns aspectos da vida no Afeganistão, das motivações a deixar o país e do desejo de permanecer na França após várias tentativas arriscadas de atravessar a Mancha.
Assim que a manifestação começa, cartazes e faixas vão ganhando espaço, e as palavras SOLIDARITY e FREEDOM ressoam pela jungle, enquanto caminhamos com os pés na lama. Mulheres, homens, crianças, idosos, ingleses, franceses, afegãos, curdos, iraquianos, sírios, eritreanos, sudaneses, etíopes... o cortejo avança e fica cada vez maior, ao som de tambores improvisados que evocam um clima de entusiasmo e fraternidade. Muitos registravam o momento com seus celulares. Torço para que num futuro próximo essas imagens sejam apenas lembrança de um momento difícil.
Chegando perto da zona portuária, onde foi erguida a cerca que impede o acesso ao Eurotunnel, pintamos um muro simbólico com mensagens de amor, paz, tolerância e esperança. Rimos, contamos histórias, nos emocionamos. Meu amigo mágico, em muitos momentos, perguntava se eu estava bem, quando era eu quem deveria manifestar preocupação com seu bem-estar.
No fim da tarde deixamos nossos amigos de volta à jungle. Oferecemos roupas secas e limpas, dois sacos de dormir e cobertores que havíamos levado. Eles pediram para que aguardássemos no carro. Quando retornaram, nos deram um presente: uma lata de redbull para cada uma e uma flor amarela encontrada num canteiro ao longo do caminho das dunas, como símbolo de amizade. FRIENDSHIP, dizia Alli.
Anotamos seus números de telefone e nos despedimos com a promessa de que nos reencontraremos. Iremos auxiliá-los de alguma forma em seu percurso, mesmo que seja pra saber como estão indo, pra conversar, pra auxiliá-los com a papelada necessária para que possam seguir adiante. Fiquei devendo um bolo e ainda quero almoçar no restaurante afegão que, segundo eles, serve um arroz com especiarias e frango muito bom.
Como demorei alguns dias pra elaborar as emoções e tudo o mais, preciso acrescentar algumas informações a este relato. Depois da manifestação de sábado, que reuniu aproximadamente 3000 pessoas, a maire (prefeita) de Calais decidiu, nesta segunda (21) exterminar alojamentos espalhados pela cidade, que abrigavam sírios e refugiados de outras nacionalidades. A polícia agiu de forma truculenta, utilizando bombas de gás lacrimogêneo e impedindo as pessoas de recuperarem seus (poucos) pertences. Lembrando que mulheres e crianças também estavam envolvidos. Ainda reina um clima de instabilidade na New Jungle.
O Estado francês afirma que receberá 24 mil refugiados. Será que serão recebidos com bombas de gás e abandonados à própria sorte ou ao trabalho incansável de associações como Secours Catholique, Croix Rouge, France Terre d’Asile, Médecins du Monde, entre outras? E os refugiados que estão em situação irregular? E se o Estado auxiliasse o maire de Téteghem a acabar com a rede de passadores (coiotes) que domina o campo da cidade e amedronta os refugiados?
Peço que vocês divulguem o texto e as imagens, para que mais e mais pessoas conheçam a situação no Norte da França. Em dezembro desse ano teremos eleições regionais e as pesquisas já indicam que Marine Le Pen, do partido Front Nacional (que prega o nacionalismo, a xenofobia e leis mais rígidas sobre imigração), pode ganhar a eleição na região Nord-Pas de Calais-Picardie. Nem preciso dizer porque... também arrisco dizer a ação “tímida” de nossos representantes nesse momento se justifica pelo medo da perda de votos da parcela da população francesa que não vê a hora de “mandar esses refugiados pra outro lugar, desde que não seja na França”. Estamos de olho. E estamos agindo...

Un grand merci à Lydie Dubois, Laurent Piton et aux bénévoles de toute la France et de l’Angleterre... vous êtes des gens bien, et tant qu’il y aura des gens comme vous, il faut continuer a se battre! Je fais passer le message de l’autre côté de l’Atlantique.